sábado, 15 de agosto de 2015

Recomendo

Continuação das minhas anotações do livro "O Ano 1000":


                A lepra era uma doença européia naquela época. Os séculos XI e XII testemunharam um dramático crescimento na construção de hospitais de caridade para leprosos, em parte para cuidar das vítimas, mas principalmente para confiná-las a uma distância segura do resto da população. Um manuscrito muito copiado do século IX, agora na Biblioteca Real de Bruxelas, mostra treze desenhos anatômicos, ilustrando as posições que o feto podia assumir no útero.  Devem ter sido baseados em observações obstétricas práticas, da mesma forma que a seguinte descrição do desenvolvimento fetal, encontrada num documento anglo-saxão do século XI na biblioteca de Canterbury: "Na sexta semana o cérebro é coberto por uma membrana externa; no segundo mês as veias se formam... e o sangue flui então para os pés e as mãos, ele se mostra articulado nos braços e pernas, tem um desenvolvimento geral; no terceiro mês ele é um homem, exceto pela alma" — o que significava, podemos presumir, que o aborto não tinha conotações éticas antes do quarto mês. As escavações em cemitérios de diversos pontos da Inglaterra revelaram até agora treze crânios anglo-saxões perfurados de uma maneira meticulosa por brocas; nove apresentam sinais de subseqüente regeneração óssea, o que afasta a possibilidade de que essa trepanação fosse parte de algum ritual sacrificial ou póstumo. Mais provavelmente era executada como um exorcismo para libertar a alma do que era considerado como uma aflição de maus espíritos. Demônios, elfos e espíritos eram o outro lado de uma medicina em que os sofredores acreditavam que podiam melhorar através da intervenção divina. Afinal, se era Deus quem proporcionava a cura para as doenças, era lógico presumir que o Diabo causava o problema em primeiro lugar.
                O anglo-saxão identificava os elfos como os ajudantes do Diabo na mortificação do corpo. As pessoas falavam em "tomado por elfos" como falaríamos hoje em germes, explicando a infecção como decorrência de uma flecha ou dardo invisível disparado por algum duende maligno... e a lógica era que uma flecha devia desempenhar um papel na cura. Se você sofria de uma pontada no flanco ou de uma dor intensa, um remédio alemão recomendado era a colocação de uma ponta de flecha ou alguma outra peça de metal na área dolorida, para depois pronunciar o seguinte encantamento: "Saia, verme, com nove pequenos vermes, saia do tutano para osso, do osso para a carne, da carne para a pele, da pele para esta flecha."88 E para o caso da invocação parecer pagã, o sofredor recebia a instrução de acrescentar: "Que assim seja, Senhor." Um encantamento inglês contra um caroço na pele, um quisto, tratava-o como se fosse uma pessoa... e como se pertencesse a um clã de caroços relacionados, que se estendiam das pequenas protuberâncias no corpo às colinas no horizonte. O caroço incômodo em seu corpo podia agora fazer o favor de arrumar as malas e voltar para junto de sua família nas montanhas?
Quisto, Quisto, pequeno Quisto,
aqui você não deve construir, aqui não tem abrigo,
mas deve ir para o norte, para a colina próxima,
onde você tem, pobre coitado, um irmão.
Ele estenderá uma folha sobre sua cabeça.
Sob a pata do lobo, sob a asa da águia,
sob a garra da águia, que você possa declinar!
Encolha como um carvão no fogo
Murche como sujeira na parede!
Desapareça como água no balde!
'Torne-se tão pequeno quanto um grão de linhaça,
e muito menor que um osso de verme e tão pequeno
que finalmente não será mais nada.
                Pode-se encontrar todos expostos num documento do século X de Winchester conhecido como "Livro das Sanguessugas de Bald". Era o "Livro das Sanguessugas" por causa da confiança medieval nas sanguessugas para propósitos medicinais. Bald era o nome do dono, afora isso desconhecido, escrito na folha de rosto. O manuscrito indica que era um manual de uso constante. Os remédios eram convenientemente relacionados numa ordem decrescente da cabeça aos pés. Uma cura para a dor de cabeça consistia em amarrar o talo de uma erva chamada crosswort na cabeça com um lenço vermelho. As frieiras deviam ser tratadas com uma mistura de ovos, vinho e raiz de erva-doce. Bem no meio dos remédios, junto com outros cuidados para a área da virilha, encontra-se o Viagra do ano 1000: a erva agrimônia, de folhas amarelas. Fervida no leite, garantia-se que a agrimônia excitava o homem que tinha "insuficiência de virilidade"... mas, se fervida na cerveja galesa, teria exatamente o efeito contrário. A presença de árvores mediterrâneas como a oliveira refletia a dependência do Livro das Sanguessugas de autoridades clássicas, como Plínio. Sugere também que a casca de oliveira e outras panacéias exóticas deviam ser negociadas na Lombardia e transportadas nos alforjes ingleses, junto com a pimenta-do-reino e outras especiarias. Diversos ingredientes no Livro das Sanguessugas possuíam qualidades alucinógenas, sugerindo que as poções eram idealizadas como paliativos para fazer com que o paciente se sentisse eufórico, sem qualquer efeito curativo, uma espécie de morfina medieval, como a "pele de rã" citada na famosa infusão das feiticeiras de Shakespeare em Macbeth, que comprovadamente possui efeitos psicodélicos. Macbeth, a peça, foi escrita no início do século XVII, mas o rei Macbeth foi um personagem da vida real, nascido por volta do ano 1000, cuja esposa recebeu nas crônicas o nome de Gruoc. Várias receitas do Livro das Sanguessugas teriam sido um crédito para as feiticeiras de Macbeth. Uma picada de aranha podia ser curada com caracóis pretos fritos e esmagados; a dor no lombo reagia à fumaça de pêlo de bode em chamas; já a calvície podia ser eliminada com um ungüento feito com as cinzas de abelhas queimadas. A pesquisa moderna não tem sido capaz de confirmar se essas receitas continham ingredientes de qualquer significado medicinal. Mas o Livro das Sanguessugas não era totalmente desprovido de conhecimentos médicos. Explicava o funcionamento do fígado no estilo de um manual moderno: "Põe para fora as impurezas que existem e coleta o sangue puro e o envia através de quatro artérias, principalmente para o coração."
                A prescrição de Bald para disenteria demonstrava uma combinação equilibrada de remédio popular, convicção religiosa e cuidado terno... que provavelmente constituía o ingrediente mais eficaz na receita: "Procure uma sarça que esteja com as duas extremidades na terra, escolha a raiz mais nova, escave, corte nove lascas na sua mão esquerda, depois entoe três vezes Miserere mei deus (Salmo 56) e nove vezes o Padre-Nosso. Pegue depois artemísia e perpétua e ferva as três, em vários tipos de leite, até ficarem vermelhas. Ele deve beber uma tigela com essa mistura, jejuando durante a noite, antes de ingerir outro alimento. Se mais for necessário, faça tudo de novo; se ainda precisar, repita pela terceira vez. Não será necessário fazer isso com mais freqüência." A cauterização envolvia a aplicação de ferros em brasa em diferentes partes do corpo, numa versão extremamente dolorosa da acupuntura. Um manuscrito italiano do século IX detalha os pontos do corpo em que o ferro em brasa deve ser aplicado. Mostra o médico segurando uma taça, numa evidente promessa de alívio da dor.
                A poção — que devia ser uma bebida de forte efeito sonífero ou seu oposto, um estimulante ou alucinógeno — podia apenas atenuar a agonia. Tudo parece desesperadamente primitivo para nós, mas as técnicas modernas, pelas quais microcâmeras e lasers permitem que os cirurgiões penetrem no corpo através das menores incisões, já oferecem alguma indicação de como as futuras gerações talvez considerem as operações de Vesícula e as cicatrizes de apêndice do século XX. A medida que estudamos toda a gama de remédios e tratamentos médicos disponíveis aos doentes no ano 1000, dificilmente podemos culpar o paciente que se esquivava da intervenção humana, decidindo deixar que a natureza seguisse seu curso. Como Aelfric sabiamente expressou: "Aquele que está doente deve rezar por sua saúde para o Senhor Deus, e suportar a dor com paciência."

Nenhum comentário:

Postar um comentário