quarta-feira, 8 de julho de 2015

No ano 1000



JULHO
O hiato da fome.
O MÊS DO FENO NO ANO 1000.
ERA a primeira grande colheita do ano, uma época de preocupação com o tempo e a necessidade de cortar e secar a erva antes que a chuva pudesse estragá-la... e tudo para alimentar os animais, já que a colheita do meio do verão não produzia comida para os humanos. quando terminava o trabalho árduo de colher o feno, o lavrador medieval descobria-se diante de outro período que era ainda mais difícil: o mês mais duro do ano inteiro, na verdade, já que as colheitas da primavera ainda não haviam amadurecido. Os ricos podiam sobreviver do que havia em seus depósitos. Tinham dinheiro para pagar os preços mais altos cobrados pelos estoques minguantes de alimentos.
   Papoulas, cânhamo e joio eram colhidos, secados e moídos para se produzir uma massa medieval conhecida como "pão da loucura". Assim, mesmo enquanto os pobres sofriam a fome, é possível que sua dieta lhes proporcionasse alguns paraísos exóticos e artificiais. A teoria social no ano 1000 dividia a comunidade entre aqueles que trabalhavam (os camponeses, mercadores e artesãos), aqueles que lutavam e administravam a justiça (os reis e lordes), e aqueles que rezavam. No ano 1000, havia cerca de trinta mosteiros espalhados pelos campos ingleses, de Carlisle no norte a St. German na Cornualha.








   Foram os monges beneditinos que levaram a palavra de Deus para a Inglaterra em 597. Comandavam as grandes catedrais em Canterbury, Rochester, Winchester e Worcester. O canto era a pulsação da devoção religiosa na Inglaterra no ano 1000. Cada monge, ao apresentar sua música, sabia que praticava para o dia glorioso em que se tornaria membro de um dos coros de anjos no paraíso, elevando a voz na presença de Deus. O canto da liturgia era uma das forças centralizadoras da Cristandade. Hoje é chamado em geral canto gregoriano, de acordo com a tradição de que foi desenvolvido pelo Papa Gregório o Grande, o mesmo Gregório que despachou os missionários para a Inglaterra. O ingresso na vida monacal implicava se despedir para sempre de uma noite completa de sono, já que duas horas depois da meia-noite era o momento fixado para o ofício noturno.    
   Muitos prédios monásticos tinham escadas que desciam direto do dormitório para a capela, a fim de atenuar o sofrimento de passar do sono para o serviço de orações no frio e escuridão de uma noite de inverno. Cinco outras horas de orações pontuavam o dia: Terça, Sexta, Nona, Vésperas e Complina, que era às sete horas da noite no inverno e às oito no verão. Depois disso, todos iam para a cama. Cada refeitório tinha um púlpito ou atril de onde
um dos irmãos lia, enquanto seus companheiros comiam em silêncio. Um documento da época descreve os sinais e a linguagem de sinais pelos quais os monges aprendiam a se comunicar, na ausência de fala. São Benedito insistia em sua Norma que os monges deviam se manter em silêncio pela maior parte possível do dia e da noite.



    Os detalhes desses sinais chegaram até nós através do manual anglo-saxão da linguagem de sinais monástica da catedral de Canterbury. O manual foi quase com certeza produzido na mesma oficina de escrita de Canterbury em que se fez o Calendário de Trabalho de Julius, mais ou menos na mesma ocasião. Ao se ler a descrição dos 127 sinais diferentes em Monasteriales Indicia, tem-se a impressão de que a hora das refeições num refeitório beneditino era como uma reunião de técnicos de beisebol, todos gesticulando furiosamente, apertando o lóbulo da orelha, esfregando dois dedos unidos pelos lados do nariz, passando as mãos pela barriga. Tomamos conhecimento da hierarquia no mosteiro. O sinal para o abade era encostar dois dedos na cabeça e pegar uma mecha de cabelos... o que talvez indicasse que por baixo da calvície da tonsura os monges deixassem os cabelos bem compridos. Mais de meia dúzia de gestos para velas, círios, lanternas e lampiões testemunham um mundo iluminado apenas pelo fogo. Mas esses sinais seculares ajudam a explicar por que os mosteiros ingleses eram tão prósperos no ano 1000. Toda a geração de estabelecimentos monásticos inspirados por Santo Agostinho e seus sucessores no século VI foi destruída pelos vikings nas ondas de ataques, finalmente contidos e revertidos pelo rei Alfred, na década de 890. Foi somente no século X que houve um renascimento dos mosteiros. Os bispos introduziram orações pela família real em suas liturgias, enquanto a família real transferia terras para a Igreja.  
   Com isso, aumentou a grandiosidade das catedrais inglesas. A estante de escrita de cada monge continha dois livros, o manuscrito em que trabalhava e o volume que copiava, pois aprender no ano 1000 era copiar. Você não inovava. É graças a essas cópias — e aos documentos preservados pelos árabes que controlavam o Mediterrâneo — que podemos hoje ler as palavras de Platão, Aristóteles ou Júlio César. E através das cópias também surgiu, pouco a pouco, o que hoje descreveríamos como criatividade. O Calendário de Trabalho de Julius é um exemplo disso. Há calendários similares do final dos tempos romanos em que cada mês é ilustrado com uma tarefa prática específica. O texto do calendário de Julius pode ser remontado a um século antes, no reinado do rei Athelstan, tio-avô de Ethelred. A lista dos santos de cada dia de Athelstan não tinha ilustrações. Já a lista de dias de festa incluía uma quantidade extraordinária de santos associados ao Pas de Calais, a área rural há muito povoada no outro lado do canal da Mancha. Isso sugeria que o poema em si, ou o escriba que o compusera, vinha do norte da França. É verdade que a lista também incluía uma grande quantidade de santos e dias de festa irlandeses. era a essência do sistema medieval de aprendizado através do precedente e acréscimo: um bonito livro de salmos flamengo, embelezado com uma lista de santos do norte da França, convertida para versos, talvez por um monge irlandês, ou um escriba que procurava por uma lista de santos da Irlanda... e tudo sob o patrocínio de um rei inglês em Winchester.
   Cem anos depois, o Calendário de Trabalho de Julius levou o processo de elaboração um estágio à frente. Talvez Canterbury tenha tomado emprestado o Saltério de Athelstan, com suas 365 linhas de versos, sob um dos muitos esquemas de intercâmbio, pelos quais os mosteiros restabelecidos da Inglaterra se emprestavam textos, a fim de reconstituir suas bibliotecas. Sabemos que Canterbury possuía naqueles anos outro lindo documento ilustrado, o chamado Saltério de Utrecht, criado por volta de 830 na diocese de Rheims, no norte da França, e caracterizado por desenhos vividos e quase impressionistas da vida cotidiana. Esses desenhos realistas extraíam seu tema de ilustrações antigas. Portanto, é bem possível que o escriba também tivesse à sua vista os desenhos ali, num estilo atraente e moderno. Lá fora, nos campos do sul da Inglaterra, onde ele devia trabalhar regularmente, como parte de seus deveres monacais, estavam os colhedores de feno usando suas foices. Assim, o escriba começou a desenhar, captando a fadiga e o suor na testa do lavrador calvo, fazendo uma pausa para respirar no lado direito do desenho de julho. No lado oposto, outro lavador pára e afia sua foice com a pedra de amolar. Admiramos hoje os desenhos desse artista talentoso e desconhecido pelo que nos dizem sobre a vida na Inglaterra no início do século XI. O desenho do mês de fevereiro mostra o podador na árvore da esquerda cortando de baixo para cima, o que era a maneira correta de podar um galho pesado. Para os olhos modernos, os desenhos são seculares. Não há halos nem cruzes. Não há absolutamente nada de espiritual neles. As palavras no calendário podem se elevar para o céu, mas os desenhos focalizam o homem de uma maneira profundamente humanista. Todo mundo acreditava em alguma coisa no ano 1000... especialmente os pagãos e aqueles que a Igreja condenava como hereges. O pecado da heresia era acreditar na coisa errada.
O Ano 1000
Robert Lacey

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